18 de fevereiro de 2010

Poesia de quinta

Eu peço ao vento
de Nuno Ramos, em O pão do corvo.

O leão

Eu peço ao vento que leve o meu cheiro. Vá. Peço ao vá. Antes que meu sangue seque. As narinas dela vão se abrir. Primeiro a cócega no focinho, depois o espanto. Ela vai reconhecer meu cheiro, vai se lembrar. Vai abrir suas narinas no alto de algum montículo nesta terra plana. Ela gosta de lugares altos. A brisa vai percorrer a sua juba espessa, depois abrir suas narinas. Eu peço ao vento que leve meu cheiro antes que o sangue seque. Antes que eu perca o medo. Antes que alguma ave me descubra. Meu pêlo já está todo encharcado e vermelho. Como foi que me feri? Foi a ponta de uma pedra. Ela vai isolar o meu cheiro no meio de tantos cheiros lá no alto daquele montículo. Vocês não sabem como ela é. É uma leoa das grandes. Tem uma patada muito forte. A zebra que ela alcança morre antes de tombar no chão. O capim onde ela dorme acorda molhado de suor. Qualquer chão é a palha dela. Qualquer animal é o seu alimento. Ela vai saber que o sangue é meu. Vá. A minha carne fica aqui mas o meu cheiro voa. Eu peço ao voa. Leva o meu cheiro até as narinas da minha leoa. Ela vai ouvir meu cheiro como a uma voz. Vai ver meu cheiro como um ponteiro fixo. As folhas debaixo de mim estão vermelhas. Os insetos pequenos bebem ali. Eu peço ao vento. Traga pra mim a minha leoa. Traga a minha leoa pra mim agora.

A leoa

Eu não saberia cuidar dele, mesmo que chegasse a tempo. Eu peço ao vento que leve meu uivo de volta. Como um chacal, como uma hiena, saúdo a savana oca, a estepe plana e a lua longe pela morte de um amigo.

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